Encontrei João pedalando, ele indo para sua bicicletaria, eu voltando para casa. Conversa vai, conversa vem, como vão seus irmãos, está bem da operação, etc.. e pergunta final: como está a bicicletaria? (da qual ele é dono).
- Você sabe bem como é; o que dá (dinheiro) é oficina. Venda de bicicleta nunca foi (bom) negócio, sempre é complicado. Contando a vida dura em sua bicicletaria a cara de João mudou, e nos despedimos.
Talvez não devesse ter perguntado. João é um velho conhecido, pessoa que gosto demais, trabalhador de qualidade, aliás, a família toda trabalhadores sérios a quem o ciclismo deve muito. Entrar no tema "bicicletaria" é querer falar sobre um negócio que é dificílimo, que definitivamente não é para qualquer um, mesmo para os que foram bem sucedidos em outros negócios.
Pela vida vi inúmeras bicicletarias abrindo e fechando, algumas muito bem montadas, abertas no momento mais apropriado, muito bem apresentadas, com mecânico bom, com dinheiro em caixa, até contando com apoio de fabricante ou de marca importada, enfim, tudo para dar certo. E não deu, definitivamente não deu. E não raro quem pôs dinheiro saiu com dívidas. Por que?
Há uma diferença enorme entre gostar de alguma coisa e trabalhar para viver dela. Há uma diferença enorme entre pertencer a um grupo social para se divertir e ter este mesmo grupo como ganha pão. Este é o primeiro erro, erro primário. Quando entra dinheiro a coisa muda, mesmo em casamentos bem sucedidos.
Negócio é negócio, trabalho é trabalho. Gostar, adorar, ter paixão, é outra coisa, completamente diferente e algumas vezes oposta. Diz minha querida prima Thereza que "amor emburrece" e nada mais sábio, verdadeiro.
Bicicleta é uma paixão, uma delícia, um prazer, um tesão, verdadeiro amor, tudo de bom, defina como quiser, mas quando você está sentado nela e pedalando. Quando se compra uma bicicletaria, você casa com tudo de bom e ruim que a bicicleta oferece, aí a história é outra. O pessoal que sempre foi tão boa gente vira dono de bicicleta e vai ser teu cliente. Upa! Dançou! Vai aparecer o maníaco, o neurótico, o detalhista, o chato... vai aparecer todos perfis psicológicos que pedalando ficavam calmos ou desapareciam sobre o selim.
O que dá dinheiro em bicicletaria, o que paga as contas, deixa a bicicletaria estável, é oficina. Sempre foi assim. Segundo alguns donos de bicicletaria, oficina corresponde a uns 60% das entradas e venda varia uma barbaridade. Qualquer bicicletaria que ancore seu negócio nas vendas está fadado a falência, isto é líquido e certo.
Mesmo vivendo no meio faz décadas, nunca soube ao certo como é a contabilidade das oficinas. Desconfio..., tenho quase certeza, tem que ter informalidade, tem que ter compra sem nota, ou as contas não fecham. Como tudo neste Brasil. A loucura, a quantidade, a irracionalidade de nosso sistema tributário prejudica todos setores da economia, não só o das bicicletas. Talvez o fato do setor de bicicletas não chamar muito a atenção ajude um pouco mais na informalidade.
As bicicletarias aprenderam a ser profissionais, felizmente. Foi-se o tempo de dar um jeitinho, que até ainda acontece, mas numa escala muitíssimo menor, só para agradar clientes imperdíveis. Felizmente a cada dia tem mais bicicletaria que se recusa a pegar bicicleta vagabunda, que são um inferno de serem trabalhadas e consertadas, pior, o dono da porcaria acha que é a bicicletaria que não sabe consertar. Outro dia fui dar um abraço em um amigo dono de uma das melhores bicicletarias, melhor, oficinas do país, e o funcionário veio a ele com o pedido, muito comum, que "o cliente quer a bicicleta para o final da tarde". A resposta foi seca: "Esquece". A questão é que dono de bicicleta quer a bicicleta pronta ontem, e perfeita, ou arma o maior barraco. Como tive amigos donos de oficina de automóvel sei que nem lá os donos são tão chatos, para dizer o mínimo. Mais, dono de automóvel não reclama do preço como os de bicicleta. E aí vai.
Ser dono de bicicletaria não é nada fácil. Já ouvi muito "mas o cara ficou rico". Até hoje não vi nenhum. Não confunda com o cara que já tinha dinheiro.
Todos que tiveram por um tempo uma bicicletaria dizem que foi o negócio mais difícil de suas vidas.
Eu costumo dizer que "sou muito louco, mas dono de bicicletaria não sou".
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