sábado, 13 de agosto de 2022

"Eu só vou dar uma voltinha de vez em quando...." = Lixo-cleta

J é daquelas pessoas que realmente merece o elogio "gente fina". Um dia dei com ele e sua bicicleta saindo para um passeio, e que bicicleta! Nháca! Quadro de alumínio, garfo rígido de aço, aro 26, pneus 1.9 com biscoitos, 21 marchas - opa! não - 18 marchas não indexadas... Nháca! Típica bicicleta do sujeito que entra na loja, olha, olha, pergunta o preço de tudo, acha tudo muito caro (?), olha as baratinhas, as montadas com um mix de peças de segunda linha (?) e compra. "Eu só vou dar uma voltinha de vez em quando...." 
Não sei como esta bicicleta entrou na vida de J, mas algo que me diz que não foi ele que comprou. J é um cara inteligente, culto, isto sei, e não cairia numa destas. Agora, milhões de brasileiros compraram milhões destas bicicletas que estão empoeiradas ou literalmente jogadas no lixo, um crime contra a economia popular que venho denunciando faz décadas. 

Peguei a lixo-cleta e a levei para casa para dar um tapa, e foi mais uma lição nesta longa vida de bicicletas. 
Detalhe: a lixo-cleta foi bem pouco usada
  • roda dianteira - eixo preso, de baixa qualidade, raio estourado, fita de aro fora do lugar, a bem da verdade nada demais e fácil de resolver. Com um pouquinho de sobra no ajuste do cônico vai dar para rodar
  • roda traseira - cubo roletado que já está com defeito, dando uns estalos altos; catraca de seis marchas não indexada e marca desconhecida, aliás, sem marca. Câmbio o mais básico possível Yamada com um posicionamento da polia superior muito distante da relação de marchas o que causa grande imprecisão na troca de marchas. Aro desalinhado, em razão de um acidente com a bicicleta; não consegui alinhar.
  • todos raios e niples oxidados. Oxidação é o que não falta pela bicicleta.
  • pedivela com aparência de coisa boa, mas não indexado, ou seja, da coroa pequena para a média a corrente subia; da média para a grande nem com reza brava. Mesmo com um câmbio dianteiro e corrente Shimano. Por incrível que pareça, o movimento central é selado, e confesso que esta sofisticação no meio de tanta enganação não entendi
  • passadores de marcha da Yamada, que conheço, são muito simples, de aparência igual a dos Shimanos, e funcionam; ou pelo menos deveriam funcionar caso o resto do sistema fosse compatível, mas no meio daquela bagunça servem para enganar os leigos.
  • troquei a catraca / relação de marchas por uma Shimano indexada, mesmo assim...
  • a corrente que veio na bicicleta não era indexada, no clique simplesmente não passa as marchas.  Instalei uma corrente indexada da Shimano já sabendo que o sistema não funcionaria por causa dos câmbio traseiro e pedivela não compatíveis. A culpa não é do passador
  • tive que trocar o avanço que estava lá por um mais curto e ali ficou claro que a bicicleta foi montada sem graxa. Muita oxidação
  • carrinho de selim não aguentou sequer o peso de J que é para lá de peso pena.
  • tenho que reconhecer que a bicicleta tem a qualidade de ser alinhada, o que nestas lixo-cletas definitivamente não é comum. Ótimo, não tive que alinhar o garfo.
O que quero dizer com tudo isto: olhando de longe a bicicleta em alumínio não pintado parece coisa boa. De perto até engana leigos. Mas quando se coloca mão na massa a coisa fica feia. E tem bicicleta sendo vendida que é muito muito pior. Bicicletas "me engana que eu gosto" são ruins de pedalar, desestimulantes, mais ainda, para lá de perigosas. 

Hoje em dia mesmo as bicicletas mais simples, montadas com peças as mais básicas, tem uma qualidade muito melhor que as antigas. O pessoal está pedalando muito mais e com isto procurando informação antes de comprar. Parabéns! Estão fazendo o óbvio. 

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Ceci

Desenho premiado, projeto ousado, gracioso, Caloi Ceci foi lançada em 1972. Acabou como um sucesso de vendas até que nos anos 90 foi mudada, recebendo rodagem 26, mas e sofrendo mudanças em seu quadro para barateá-la. A verdade é que esculhambaram o genial desenho original.
O impacto das primeiras Ceci foi grande. Mesmo quem não pedalava comentava sobre sua beleza. As propagandas foram marcantes, inteligentes. Mulheres de nível social alto, e era para elas que a Ceci foi destinada, eram vistas pedalando por bairros sofisticados como os Jardins, fato raro, para não dizer espantoso para a época. Iniciava se o rompimento com "lugar de mulher é em casa", "bicicleta é coisa de homem" e principalmente o "bicicleta é coisa de gente pobre", discursos triviais então. 
A Ceci trouxe charme e delicadeza para o mercado de bicicletas, exatamente o que se cobrava do comportamento das mulheres "de bem", como se dizia na época e seja lá o que isto significasse então. Deu certo, acertaram na mosca. Não pense que houve uma revolução com muitas mulheres saindo para pedalar, mas com a Ceci abriram o gotejar de uma torneira que não teria retorno e que se transformaria na enxurrada que temos hoje. 

Pouca gente sabe que as primeiras ainda eram montadas com rodas aro 27, a mesma medida da Caloi 10 lançada um ano antes. Para "abaixar" a bicicleta e dar mais comodidade para as mulheres logo mudado para 26 1 3/8. As 27 são muito mais harmônicas, elegantes que as com 26 1 3/8, aliás praticamente o mesmo diâmetro de uma roda 700 X 38. A outra mudança da primeira série para a segunda está bagageiro, que foi reforçado. A delicada cestinha branca que entortava com facilidade continuou a mesma adorada por todos.

A Ceci das fotos abaixo é de aproximadamente 1976 e está praticamente inteira original. Só o selim, manoplas, pedais e sapatas de freio não são as originais. Faltam a cestinha e refletor traseiro. Ou seja, o pedalar é original.

Eu não pedalava uma Ceci fazia décadas e fiquei surpreso com o muito agradável rodar dela. Ela vem com 3 marchas não indexadas que são longas, pesadas, em comparação ao que se usa hoje. O passador de marchas fica no avanço de guidão e é necessário aprender, ou no meu caso reaprender, a mudar as marchas movendo a alavanca lentamente para a posição exata. 
A forma de pedalar de 40 anos atrás era completamente diferente, numa cadência mais lenta, pesada, usando a força. No plano a menina vai hiper bem, nas subidas a relação e o peso da bicicleta e de suas rodas se faz sentir. Ela é estável e muito previsível, o que te leva a pedalar tranquilo.
Aros, raios e cubos são de aço; o pneu 26 1 3/8 pode ser calibrado em até 50 libras, roda bem, mas de qualquer forma as rodas são pesadas. Em razão do aro ser em aço os freios param suavemente (?) e é necessário reaprender o pedalar para ter tempo de frear. Quer saber, no final das contas é uma delícia porque tudo é mais lento, menos tenso, mais no ritmo da propaganda da própria Caloi daquela época: "pedalando, pedalando, pedalando..."

A Caloi Ceci me surpreendeu e muito. Não é por menos que o valor das usadas como esta é ao meu ver alto. Hoje em dia o pessoal, principalmente as mulheres, sabe muito bem o que é uma boa bicicleta. Na época da Ceci e Caloi 10 a maioria das bicicletas era de baixa qualidade. A bem da verdade as peças que eram montadas na Ceci fabricadas pela própria Caloi eram de baixa qualidade, em especial o movimento central que dá folga rapidamente. 
Naqueles tempos pedalava quem gostava ou ficava irritado facilmente. Olhando para trás, para aqueles tempos perdidos no passado, enquanto pedalava por aí esta velha jovem senhora posso dizer que a Ceci faz por merecer seu nome na história.