sexta-feira, 28 de julho de 2023

Pedalar chique não choca mais

Calça bege, cinto de couro, meia combinando com cinto e calça, camisa esporte social de manga curta com discreta estampa escocesa em verde e azul claro, suéter nas costas, mocassim, pedalando na ciclovia do Rio Pinheiros lotada de ciclistas vestidos com enxoval completo de ciclista, capacete, bermuda e camiseta de ciclismo colados ao corpo, bicicletas de estrada caras, cruzando forte para lá e para cá. Para minha feliz surpresa ninguém estranha mais um diferente. Num passado não muito distante seria um auê; "o que este louco está fazendo aqui?"  

A caixa era bem grande e desajeitada, sendo carregada ora por uma mão, ora por outra, num pedalar desconfortável para seguir em frente. Ele vai passando por ciclovias num final de manhã com não muitos ciclistas treinando, vários ciclistas indo para o trabalho, a maioria passando paramentados de capacete, pelo menos. Nos mais de 7 km só um ou dois olharam com estranheza. Lembrou até a cena de uma menina carregando uma TV plana em Amsterdam que para todos em volta seguiu em frente como se fosse a coisa mais normal. Dependendo de onde e quando, é. 
 
Fato é que o ciclista não dá mais a mínima para o outro. São cidadãos comuns que se transportam para lá e para cá, exatamente como motoristas, motociclistas, passageiros de ônibus e metrô, ou pedestres. Cuidam de suas vidas e ponto final. O que o outro faz, se não os incomoda ou cria problemas, não interessa. Aqui, nesta São Paulo, levamos este desligamento do outro um pouco além do conveniente, do apropriado, mas esta é outra questão. Este cada um pedala seu caminho e sua vida é bom e é ruim ao mesmo tempo. Bom porque o uso da bicicleta foi incorporado por uma boa parte da população. Espero que seja de fato a absorção da cultura da bicicleta, o que devido a alguns detalhes sutis tenho minhas dúvidas. Há uma diferença entre sentar e pedalar uma bicicleta e entrar no espírito desta máquina simples e meio mágica chamada bicicleta que transformou pessoas, culturas e países. De qualquer forma o que vem acontecendo a princípio é bom, mas poderia ser muito melhor. 
Só lembrando que na periferia, nas praias e em cidades mais planas esta cultura já existia e continua existindo, não a do esporte, mas a do transporte, do uso prático da bicicleta. Lá se vê de tudo, até um sujeito carregando uma geladeira, bom, mas este chama atenção até lá. Falo aqui sobre este povo da área central da cidade, ciclistas de última hora, novatos, uns tantos na moda.

Ruim porque infelizmente os ciclistas que aí estão não captaram o velho e bom espírito de coletividade que a bicicleta oferece. É muito triste, mas hoje em dia oferecer ajuda ou orientação não raro é tido como invasão, inconveniência grosseira, ou até mesmo desrespeito a beira de um convite para sair na porrada. Quantos já deixei para trás com pneu furado, o que seria para mim impensável, inaceitável, faz alguns anos. Você para, pergunta "precisa de ajuda" e o sujeito responde "não!" sem o muito obrigado que socialmente seria recomendável. 

Boas épocas quando ciclista ajudava ciclista, que saudades! Mas estes tempos azedos, individualistas, é só reflexo da sociedade selfie que vivemos intensamente. Se um dia estes tristes dias passarem, talvez o povo perceba o que a bicicleta de fato oferece. 

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Está ventando muito. Hora do treino de subida

Que ventania! As árvores estão balançando forte, as janelas tremem e assobiam, nuvens passam rápido. Aproveita, sai para pedalar ou vai treinar. "Estás louco?" Pode ser, mas ventania é uma daquelas oportunidades que não devem ser perdidas para melhorar o condicionamento físico.  

Para baixo todo santo ajuda, com certeza e para a felicidade da maioria. E vento de popa (na traseira) empurra que é uma beleza. Está aí o segredo, as duas situações são moleza, sentar no pudim, portanto o contrário é sangue, suor e lagrimas; ok, nem tanto, mas pelo menos um sofrimento proveitoso.

Agora direto ao ponto; é impossível pedalar sem ter que enfrentar uma subida ou um vento, portanto prepare-se. Considero vento muito mais difícil que subidas porque é imprevisível, fica variando, nunca se consegue prever quanta força, quanta energia será necessária para seguir em frente. O pior inimigo é o invisível. 
Tenho boas recordações de várias subidas, mas não guardo o mesmo prazer de ventanias pegas de frente. Numa delas, pedalando numa estrada, a bicicleta simplesmente parava nas descidas. Em cada uma das descidas tive que engatar a primeira e pedalar com muita força, como estivesse subindo uma parede, até chegar na sombra de vento, lá em baixo. Todas subidas, na sombra de vento, foram um prazer, mas quando ia chegando no topo e início da descida voltava o suplício. Eu era jovem, forte, estava bem treinado e mesmo assim sofri uma barbaridade naqueles 10 ou 15 km de subidas e descidas sem parar de fazer força. 

Outra lembrança foi em Recife, quando todo feliz pedalei de Boa Viagem para o Centro fácil, fácil, uma beleza. Na volta peguei um vento contra vindo do mar, vento de proa mesmo, e voltar para casa foi demorado e dolorido. Num determinado ponto fui ultrapassado por uma senhora correndo a pé, ou quase andando. 
Todo mundo sonha pedalar na Holanda, pais plano, só ciclovias, o paraíso das bicicletas... até entrar o vento do Mar do Norte, forte, gelado, impiedoso. Numa das vezes a ventania congelante chegou quando faltava uns 3 km para o hotel. Para se ter ideia do é, tive que descer da bicicleta e empurrar uns 100 metros até uma loja onde entrei para não congelar. Comprei um agasalho, cruzei o canal batendo o queixo para tomar um chocolate fervendo para estabilizar. Tudo isto em uns 20 minutos se tanto, do momento que não conseguia mais pedalar até o primeiro gole do delicioso chocolate.
Vivemos num país tropical, portanto não há o que temer em relação a congelar no vento. Talvez ser precavido para não ficar ensopado ou passar algum frio, mas nada além. 

Pedalar no vento usa praticamente a mesma técnica de pedalar nas subidas. Vento vem de vez em quando, as subidas estão lá para quando quiser e puder.
Aprender a subir melhora muito o rendimento em todas outras situações, basta fazer correto. O segredo é iniciar a subida devagar para terminar rápido, regra que vale para qualquer outra situação, plano, distância, e até mesmo descida. Tem que ir pegando a situação com calma para o corpo se adaptar. Entrou de sola na subida, acreditou que embalar no começo facilita, e outras soluções mágicas, não dá certo mesmo. O correto é fazer a musculatura, o cardíaco e respiratório, se adaptarem lentamente ao esforço e continuar pedalando mantendo uma cadência que não exploda você. A boa subida é aquela que você mantem um esforço possível constantemente, sem picos, sem "morreu - parou - voltou - morreu - etc...", o que é muito comum. Por incrível que pareça em subidas longas e pesadas ir lento se chega rápido. 
Muito importante, tem que se controlar a ansiedade, que mata tanto quanto a própria subida. A saber, ciclistas profissionais são treinados para evitar a ansiedade inevitável (até para eles, profissionais) no final de qualquer subida. Quem já fez uma longa subida cansativa, cansado, mas bem, mas quando chegou nos últimos metros sentiu as forças sumirem e morreu! Normal. Por isto se deve controlar a ansiedade em toda subida. Como? Controlando os pensamentos e baixando a respiração.

Vento é um treino maravilhoso, ou terrível, como queira, porque você nunca sabe ao certo o que vai acontecer. Na subida o ciclista vê o que está a frente, no vento não. Vento é imprevisível, o que ensina muito sobre como usar constante e corretamente as marchas e a controlar a ansiedade, como se concentrar no pedalar, em usar todas as técnicas que tiver para seguir em frente. Dependendo do vento você volta para casa moído. Se der sai a favor do vento para aquecer a musculatura e volta contra. 
Divirta-se. 

Numa das vezes junto com vento veio um raio que caiu no meio da estrada a uns 500 metros a frente, se tanto. Óbvio que não só parei imediatamente como me abriguei debaixo de um viaduto. Acabou a brincadeira. 
Noutra, estava no meio de uma ponte e vi uma parede, literalmente, cor de terra vindo em minha direção. Vinha rápido e ia engolindo a paisagem. Quando chegou em mim descobri o que é uma tempestade de pó, que chamam de tempestade de arreia. Fica aqui o aviso: se um dia tiver a mesma experiência corra para um abrigo. 

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Pneu não assenta direito no aro?

O velho e surrado pneu começou a mostrar sua lona. Hora de trocar. Peguei um par de pneus praticamente novos de uma das melhores marcas chinesas do mercado que estavam numa bicicleta parada e tentei fazer a troca. Não consegui montar os novos, não teve jeito. Conseguir eu consegui, o problema é que enchia e o pneu pulava do aro. Recoloquei no aro tomando cuidado para que ficasse certinho, por igual em todo perímetro, enchi com bomba de pé bem lentamente, e num ponto pulou fora do aro de novo. Usei uma outra técnica, rodar devagar uns metros com baixa pressão para ele assentar uniformemente e... e... e... o pneu pulou fora do aro mais uma vez. Nunca tinha acontecido com o pneu velho, nacional. Uai, o que está acontecendo? (Sei o que foi e já conto). Desmontei os dois pneus seminovos, inspecionei com cuidado, nada. Estranho, os mesmíssimos estavam perfeitamente montados e alinhados, nunca escaparam dos outros aros ou apresentaram este problema.

Inconformado e curioso para descobrir o que estava acontecendo, peguei um par de pneus 1.5 também importados que só usei uma vez quando subi a Serra do Rio do Rastro, montei e os dois pneus também pularam do aro quando chegavam na pressão mínima, 40 libras.

Confirmado o que pensava, voltei os pneus brasileiros agora carecas que nunca pularam fora do aro e sempre rodaram alinhados. 

Agora a mais provável explicação: aros com perímetro (circunferência) menor do que o padrão. Por que sei? Por causa de uma reclamação que fiz para a Pirelli sobre problemas com os pneus das Caloi 10 creio que em 1979 ou 1980. Apresentavam o mesmo problema, com a calibragem recomendada eles ou estouravam ou deformavam. Na Pirelli fui recebido gentilmente pelo vice presidente da empresa no Brasil. Ele reconheceu que havia um problema só aqui no Brasil, e completou informando que o mesmo pneu era exportado e vendido para todo mundo, incluindo Europa, e que não haviam reclamações por lá. A razão para os problemas por aqui seria a qualidade dos aros, que não tinham o perímetro correto. Avisou também que iriam diminuir a pressão recomendada para evitar futuros problemas aqui, o que fizeram logo depois, de 70 para 60 libras. 
Montar pneu no aro naquela época era complicado. E ter problema com pneu era trivial.

Quando chegaram as primeiras importadas no Brasil descobrimos que de fato havia algo muito errado nesta relação dos pneus com os aros fabricados por aqui. Montar, desmontar, calibrar bem, tudo ficou muito mais fácil e confiável; incluo aqui a frenagem, que com aros nacionais era bem ruim, aos trancos. Rodar com os aros KKT, japoneses, de excelente qualidade, era um sonho realizado em todos sentidos.

Voltando; depois das explicações na Pirelli fui atrás do principal fabricante de aros e descobri, vendo pessoalmente, que eles não faziam manutenção nas máquinas que produziam os aros. Qualquer máquina de produção necessita constante ajuste, que é feito por um especialista, o ferramenteiro, que tira as folgas causadas pelo próprio funcionamento da máquina. Como ninguém reclamava, tudo era fabricado de qualquer forma, não só os aros que saíam com variações inaceitável, incluindo no alinhamento, mas isto é uma outra história que não cabe aqui.

- Bom, e daí, por que o pneu nacional fica montado no aro e o bom importado não? perguntarão.
A resposta é simples: baseado na minha experiência anterior, suponho que como o fabricante nacional de pneus sabe que alguns aros fabricados no Brasil acabam sem o perímetro exato definido por normas internacionais, eles fabricam os pneus com um perímetro um pouquinho menor, mas dentro do limite possível estabelecido por estas mesmas normais internacionais, já que são exportados. É um jeitinho inteligente para evitar problemas dos quais eles não têm nenhuma responsabilidade. IMETRO? Com todo respeito, não dá conta do recado. E continuamos no 'ninguém reclama', o pior da história.

Tenho a dizer que os aros nacionais de hoje são infinitamente melhores que os daqueles anos terríveis da década de 80, já não apresentam erros básicos, são bem fabricados, tem praticamente a mesma qualidade dos importados, mas ainda poderiam melhorar. Aliás, sempre se deve melhorar. Não tive a pachorra de medir o perímetro dos aros, aliás nem tenho ferramental de precisão para tal, mas o problema denuncia o erro. 

Nas fotos, a linha de assentamento dos pneus nos aros é bem visível e dá para entender o que digo
  

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Câmbio enroscando no raio? Nunca

No Tour de France deste ano um dos ciclistas teve uma queda de corrente das coroas do pedivela e não conseguiu colocá-la de volta. Não passaram toda a imagem, mas quando pegaram o ciclista estava com a mão na corrente e sem conseguir encaixá-la na coroa. Ups! Teve que esperar o mecânico da equipe chegar para resolver o simples problema. Ups! Estranho. Para mim, mais estranho ainda foi o ciclista não ter conseguido voltar a corrente para o lugar enquanto pedalava, o que normalmente é fácil. Acontece, mas... 
Bicicleta de ciclista profissional, principalmente dos top, aqueles 200 melhores do planeta que participam de um Tour, não derruba a corrente nem pagando? Não deveria, mas por uma tremenda falta de sorte pode acontecer e não por culpa do ciclista. Câmbio eletrônico? Tem ciclista profissional de ponta que tem suas restrições. Agora, o top não conseguir re-engatar a corrente? Com certeza ele nunca pedalou uma bicicleta de supermercado; se tivesse teria prática e saberia como fazer.

Na frente a corrente cai no movimento central. Atrás, se acontecer, o câmbio é puxado para trás pelos raios e pode ir para o espaço. Deprimente.
Quanto mais cara a bicicleta mais difícil de acontecer uma 'tragédia' destas, mas se a bicicleta tomou um tombo e bateu a gancheira... 

Hoje, comigo, numa subida a primeira marcha da relação traseira, a mais leve, fez o barulho maldito, aquele que quem ouviu uma vez nunca mais esquece. É aquele quando o câmbio traseiro está com seu parafuso limitador desregulado, passa um pouco do limite e bate nos raios. Apavorante! Por sorte, e também por prática, imediatamente parei de pedalar e estanquei a mão no freio traseiro para o não perder o câmbio. Foi só um raspar; câmbio inteiro.
O parafuso limitador de curso do câmbio desregulado poderia ter feito a corrente entrar entre os raios e a relação traseira, ou só fazer barulho, o que foi meu caso. Por azar, daqueles doloridos, muito doloridos, poderia ter mandado para o inferno um câmbio Shimano Dura Ace, papa finíssima, de colecionador, como aconteceu com um amigo que chora até hoje. Sorte, muita sorte, o meu só fez barulho; amém!

Com muita sorte a corrente vai entrar entre os raios e a relação traseira. Teve a sorte, aconteceu uma vez, ajuste para não perder o câmbio. 

Voltei para casa com muito cuidado e delicadeza, sem engatar na mais leve. Cheguei, parei a bicicleta e esqueci de ajustar o parafuso limitador. Já estava na cama, luz apagada, deu o estalo. Liguei a luz e fui fazer o ajuste imediatamente; vale muito mais a pena que perder o câmbio, que custa caro, além de ter que voltar para casa empurrando a bicicleta, uma procissão para pagar o pecado do descuido e chorar a perda estúpida. Câmbio ajustado, voltei para a cama e dormi com os anjos.

Ter os limites dos câmbios, dianteiro e traseiro, ajustados é muito fácil, não precisa nem de mecânico. 

Olha o câmbio traseiro por trás da roda traseira. Tudo tem que estar paralelo à roda: gancheira, câmbio e corrente. Se estiver angulado para dentro, apontando para a roda ou, pior, em paralelo aos raios da roda está errado e a possibilidade do câmbio bater, enroscar e ser arrancado e inutilizado e alto. 


Se você olhar e tudo estiver em paralelo com a roda é simples, basta girar o parafuso limitador. Ok, vamos lá:

Não entendeu? Quer uma explicação mais técnica? Olha a página 11 deste documento técnico da Shimano.

Quanto mais cara a bicicleta mais difícil de acontecer uma 'tragédia' destas, mas se a bicicleta tomou um tombo e bateu a gancheira... o câmbio vai ficar mais próximo dos raios, portanto...

segunda-feira, 3 de julho de 2023

A vida das bicicletarias

Encontrei João pedalando, ele indo para sua bicicletaria, eu voltando para casa. Conversa vai, conversa vem, como vão seus irmãos, está bem da operação, etc.. e pergunta final: como está a bicicletaria? (da qual ele é dono).
- Você sabe bem como é; o que dá (dinheiro) é oficina. Venda de bicicleta nunca foi (bom) negócio, sempre é complicado. Contando a vida dura em sua bicicletaria a cara de João mudou, e nos despedimos. 
Talvez não devesse ter perguntado. João é um velho conhecido, pessoa que gosto demais, trabalhador de qualidade, aliás, a família toda trabalhadores sérios a quem o ciclismo deve muito. Entrar no tema "bicicletaria" é querer falar sobre um negócio que é dificílimo, que definitivamente não é para qualquer um, mesmo para os que foram bem sucedidos em outros negócios.
Pela vida vi inúmeras bicicletarias abrindo e fechando, algumas muito bem montadas, abertas no momento mais apropriado, muito bem apresentadas, com mecânico bom, com dinheiro em caixa, até contando com apoio de fabricante ou de marca importada, enfim, tudo para dar certo. E não deu, definitivamente não deu. E não raro quem pôs dinheiro saiu com dívidas. Por que?

Há uma diferença enorme entre gostar de alguma coisa e trabalhar para viver dela. Há uma diferença enorme entre pertencer a um grupo social para se divertir e ter este mesmo grupo como ganha pão. Este é o primeiro erro, erro primário. Quando entra dinheiro a coisa muda, mesmo em casamentos bem sucedidos.
Negócio é negócio, trabalho é trabalho. Gostar, adorar, ter paixão, é outra coisa, completamente diferente e algumas vezes oposta. Diz minha querida prima Thereza que "amor emburrece" e nada mais sábio, verdadeiro. 
Bicicleta é uma paixão, uma delícia, um prazer, um tesão, verdadeiro amor, tudo de bom, defina como quiser, mas quando você está sentado nela e pedalando. Quando se compra uma bicicletaria, você casa com tudo de bom e ruim que a bicicleta oferece, aí a história é outra. O pessoal que sempre foi tão boa gente vira dono de bicicleta e vai ser teu cliente. Upa! Dançou! Vai aparecer o maníaco, o neurótico, o detalhista, o chato... vai aparecer todos perfis psicológicos que pedalando ficavam calmos ou desapareciam sobre o selim. 

O que dá dinheiro em bicicletaria, o que paga as contas, deixa a bicicletaria estável, é oficina. Sempre foi assim. Segundo alguns donos de bicicletaria, oficina corresponde a uns 60% das entradas e venda varia uma barbaridade. Qualquer bicicletaria que ancore seu negócio nas vendas está fadado a falência, isto é líquido e certo.

Mesmo vivendo no meio faz décadas, nunca soube ao certo como é a contabilidade das oficinas. Desconfio..., tenho quase certeza, tem que ter informalidade, tem que ter compra sem nota, ou as contas não fecham. Como tudo neste Brasil. A loucura, a quantidade, a irracionalidade de nosso sistema tributário prejudica todos setores da economia, não só o das bicicletas. Talvez o fato do setor de bicicletas não chamar muito a atenção ajude um pouco mais na informalidade.
 
As bicicletarias aprenderam a ser profissionais, felizmente. Foi-se o tempo de dar um jeitinho, que até ainda acontece, mas numa escala muitíssimo menor, só para agradar clientes imperdíveis. Felizmente a cada dia tem mais bicicletaria que se recusa a pegar bicicleta vagabunda, que são um inferno de serem trabalhadas e consertadas, pior, o dono da porcaria acha que é a bicicletaria que não sabe consertar. Outro dia fui dar um abraço em um amigo dono de uma das melhores bicicletarias, melhor, oficinas do país, e o funcionário veio a ele com o pedido, muito comum, que "o cliente quer a bicicleta para o final da tarde". A resposta foi seca: "Esquece". A questão é que dono de bicicleta quer a bicicleta pronta ontem, e perfeita, ou arma o maior barraco. Como tive amigos donos de oficina de automóvel sei que nem lá os donos são tão chatos, para dizer o mínimo. Mais, dono de automóvel não reclama do preço como os de bicicleta. E aí vai. 

Ser dono de bicicletaria não é nada fácil. Já ouvi muito "mas o cara ficou rico". Até hoje não vi nenhum. Não confunda com o cara que já tinha dinheiro. 

Todos que tiveram por um tempo uma bicicletaria dizem que foi o negócio mais difícil de suas vidas. 
Eu costumo dizer que "sou muito louco, mas dono de bicicletaria não sou".