esquerda, Trek Singletrack 820, 1989; direita, Haro Impasse 1989 |
Como sempre fiz parei o carro
e entrei na modesta bicicletaria de Guaratuva para ver o que tinham de
diferente. Um senhor me atendeu, perguntei sobre algumas peças que só são encontradas
no interior, enquanto ele pegava o que havia pedido fui olhando em volta e
jogada num canto, suja, enferrujada, sem algumas peças, outras em péssimo
estado, estava a Trek Singletrack 820 1989 tamanho 17, justamente o tamanho de
Teresa que então me acompanhava. Quando Teresa saiu da loja eu comecei a
conversar com o senhor sobre a Trek. "É de meu filho. Dei para ele, mas
ele não cuida. Dá até raiva. Não conserto mais!" disse ele. "E tem
negócio?" perguntei. "Dá 180 e leva". E só quando coloquei-a no
porta-malas do meu adorado Fiat Uno é que meu entusiasmo passou para o modo trouxa.
Quando estava pegando a estrada olhei pelo espelho, olhei para Teresa e disse
rindo "Minha paixão (pelas bicicletas) me enfiou numa fria de novo. Estou
louco. Olha só o estado desta bicicleta!"
Não sei exatamente quanta
arreia saiu da coitada da Trek, mas o suficiente para preencher forminhas de
peixinho, estrelinha e sereia juntas. Desmontei rezando para que tudo soltasse,
algumas peças só soltaram na base de delicadas marteladas, e fora o canote de
selim tudo soltou. Desmontada e limpa; silêncio, pensamentos, o que fazer.
O primeiro passo foi fazer uma
pesquisa sobre como limpar ferrugem das peças: esponja grossa ou bombril com
óleo 40. Funciona. Os cubos continuam até hoje com marcas, mas a corrosão não
progrediu. Os aros de alumínio originais estavam em boa condição. Não deu para
trocar a raiação traseira, trocada por raios duplos, grossos, completamente
enferrujados, e seus niples praticamente travados. WD40 neles, um dia de banho,
e destravaram. Optei por deixar a raição dianteira como estava, enferrujada,
porque ainda era a original e a roda estava relativamente bem centrada. WD40
nos niples, uma boa noite de descanso, um tapinha e zerou. Quadro e garfo não
tinham jeito, raspei e repintei. Confesso que a pintura ficou um horror,
daquelas que ladrão passa longe, e era o que eu queria. Fiquei impressionado
com a qualidade dos tubos desta Trek básica que com certeza viveu muito tempo
na praia; superficialmente enferrujados, mas bons para muitos anos de pedal. O maior
problema era o canote, completamente travado, no que chamam de solda química,
quando a oxidação do alumínio reage com o cromo-molibdênio e forma uma peça única.
Levei num torneiro que serrou o canote e passou o torno por dentro até chegar
no tubo de selim. "Fiz um milagre! Você tem muita sorte. Eu tinha a
ferramenta correta" disse ele. Eu sei.
Remontei com medo que tivesse
que trocar rolamentos, mas não. Depois de dissolvida a graxa grossa e cheia de
areia consegui testar os cubos e caixa de direção e funcionaram, para meu
espanto. Só o movimento central estava imprestável, o que era de se esperar. Fiquei
surpreso e feliz que a rosca do quadro não tivesse sido atacada pela corrosão. Pedivela,
relação traseira e corrente, lixo. No final das contas tive que comprar um
pedivela, catraca simples, sem marchas, corrente, dois pneus e câmaras, pedais,
conduites e cabos, manetes de segunda mão, V.brakes, selim com molas. Depois de
um tempo troquei os pneus por Bontrager 26 2.1 pressão alta para asfalto, a Trek
merecia e como! Teresa simplesmente tomou posse dela.
Ontem, voltando do aniversário
do neto, Teresa disse que se tivesse que ficar com uma única bicicleta seria
aquela. Ela está fazendo este ano 30 anos, muitos deles maltratada pela maresia
e um moleque mimado. Roda macio e rápida feito um anjo. Quem olha não dá nada.
Quem pedala não quer devolver.
E há vícios que nunca perdemos
na vida.
A Haro Impasse estava parada
no meio da rua servindo de baliza para estacionamento de vaga de automóvel de
uma tradicional bicicletaria. O dono me perguntou o que queria fazer com
"aquela Caloi", não respondi, só paguei o que me pediu, R$ 150,00.
Era só um esqueleto, quadro, garfo, avanço, guidão, manoplas; o que
restava dos manetes, passadores de marchas e freio dianteiro além do canote
torto e selim de péssima colocados ali provavelmente para torna-la mais
visível; rodas amassadas, pneus ressecados e sem uma das câmaras; nada de
pedivela, câmbios, cabos e corrente. Dei mais R$ 35,00 por uma câmara nova para
sair rodando com ela, bem entendido, pedalando a minha e empurrando ela.
"Como você vai fazer para levar?" foi a última coisa que o velho
bicicleteiro me perguntou. "Ué! Você foi ciclista profissional, sabe como
se faz", e lá fui eu com as quatro rodas rua abaixo.
Só quando cheguei em casa é
que fui olhar com atenção o que tinha comprado. Sempre é assim, o entusiasmo
infantil vai tão mais rápido que sequer vê o racional pelo espelho retrovisor. Depois
que faço estas besteiras, e adoro fazê-las, o primeiro olhar sempre vem
acompanhado de um grito silencioso dentro da cabeça - "Estou louco! Não!
sou louco!".
Bom, a hora da verdade: quadro
e garfo em bom estado, uma leve ferrugem aqui outra ali, e pintura original,
desbotada, linda, me faz sorrir. Avanço e guidão enferrujados, mas com longa
vida pela frente. Aros danificados porque devem ter passado direto por um
buraco profundo ou subido numa guia sem frear; traseiro com um afundamento de
quase dois centímetros, o dianteiro bem menos, mas bem torto. Rolamentos,
todos, surpreendentemente funcionando bem. Estranho, a graxa parecia nova.
Desmonta tudo e boa surpresa,
está melhor que a aparência. Dá para perceber pela graxa dos rolamentos que foi
menos usada que aparenta. Passadores Shimano GS 1988, ótimos, manetes, freios, tudo
Shimano original, inutilizados. Triste. Canote, carrinho de selim e selim desta
qualidade nem pensar. Vai tudo para reciclagem.
Paro, avalio, decido
remonta-la sem marchas. Olho o que tenho no meio das caixas de peças de meia
vida ou descartadas por amigos e descubro que tenho praticamente tudo,
inclusive o movimento central e o pedivela simples, de coroa única. Vou
precisar comprar o par de Vbrakes, catraca, e um selim. O eixo traseiro está
meia boca, mas fica por enquanto. Vai demorar, vai dar muito trabalho, mas
creio que consiga recuperar os aros originais. E recuperei, pelo menos consegui
que eles funcionem. O dianteiro quase zerou; o traseiro estava indo no bom
caminho, mas a ansiedade fez o trabalho passar do ponto. Estão montados na
linda bicicletinha, rodam, mas um dia terei que trocar. Será uma decisão que
tomarei depois de ter rodado uns bons km.
Montada, pronta para rodar. O
pneu da frente, um Pirelli faixa branca com cravos, deu para aproveitar. O
traseiro, um Levorin Praiano estava desalinhado e decidi trocar por um pneu de
competição MTB que tinha guardado. Bicicleta urbana com pneus de cravo é ruim,
mas a ideia aqui é gastar o mínimo possível, e gastei pouco. Leva para rua,
traz para a oficina, ajusta, leva para rua, traz para ajuste... "Deu!
Funciona."
Tal qual a Trek e todas as que
restaurei ainda vai ter um trabalhinho, porque sou completamente neurótico com
qualidade. Mesmo do jeito que está dá para perceber que quadro e garfo desta Haro
Impasse 1988 é um sonho. Creio que seja 1988 pelas peças, mas uma coisa me
chamou atenção: a caixa de direção é over, o que não me lembro de ter visto
naquela época. Só fico triste porque é pequena para mim. Não importa, alguém
vai querer e se apaixonar, disto não tenho dúvida.
Parabéns pelas restaurações das Bicicletas femininas, Sr. Arturo!
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