terça-feira, 29 de outubro de 2019

Ressuscitando duas bicicletas mortas

esquerda, Trek Singletrack 820, 1989; direita, Haro Impasse 1989
Como sempre fiz parei o carro e entrei na modesta bicicletaria de Guaratuva para ver o que tinham de diferente. Um senhor me atendeu, perguntei sobre algumas peças que só são encontradas no interior, enquanto ele pegava o que havia pedido fui olhando em volta e jogada num canto, suja, enferrujada, sem algumas peças, outras em péssimo estado, estava a Trek Singletrack 820 1989 tamanho 17, justamente o tamanho de Teresa que então me acompanhava. Quando Teresa saiu da loja eu comecei a conversar com o senhor sobre a Trek. "É de meu filho. Dei para ele, mas ele não cuida. Dá até raiva. Não conserto mais!" disse ele. "E tem negócio?" perguntei. "Dá 180 e leva". E só quando coloquei-a no porta-malas do meu adorado Fiat Uno é que meu entusiasmo passou para o modo trouxa. Quando estava pegando a estrada olhei pelo espelho, olhei para Teresa e disse rindo "Minha paixão (pelas bicicletas) me enfiou numa fria de novo. Estou louco. Olha só o estado desta bicicleta!"
Não sei exatamente quanta arreia saiu da coitada da Trek, mas o suficiente para preencher forminhas de peixinho, estrelinha e sereia juntas. Desmontei rezando para que tudo soltasse, algumas peças só soltaram na base de delicadas marteladas, e fora o canote de selim tudo soltou. Desmontada e limpa; silêncio, pensamentos, o que fazer.
O primeiro passo foi fazer uma pesquisa sobre como limpar ferrugem das peças: esponja grossa ou bombril com óleo 40. Funciona. Os cubos continuam até hoje com marcas, mas a corrosão não progrediu. Os aros de alumínio originais estavam em boa condição. Não deu para trocar a raiação traseira, trocada por raios duplos, grossos, completamente enferrujados, e seus niples praticamente travados. WD40 neles, um dia de banho, e destravaram. Optei por deixar a raição dianteira como estava, enferrujada, porque ainda era a original e a roda estava relativamente bem centrada. WD40 nos niples, uma boa noite de descanso, um tapinha e zerou. Quadro e garfo não tinham jeito, raspei e repintei. Confesso que a pintura ficou um horror, daquelas que ladrão passa longe, e era o que eu queria. Fiquei impressionado com a qualidade dos tubos desta Trek básica que com certeza viveu muito tempo na praia; superficialmente enferrujados, mas bons para muitos anos de pedal. O maior problema era o canote, completamente travado, no que chamam de solda química, quando a oxidação do alumínio reage com o cromo-molibdênio e forma uma peça única. Levei num torneiro que serrou o canote e passou o torno por dentro até chegar no tubo de selim. "Fiz um milagre! Você tem muita sorte. Eu tinha a ferramenta correta" disse ele. Eu sei. 
Remontei com medo que tivesse que trocar rolamentos, mas não. Depois de dissolvida a graxa grossa e cheia de areia consegui testar os cubos e caixa de direção e funcionaram, para meu espanto. Só o movimento central estava imprestável, o que era de se esperar. Fiquei surpreso e feliz que a rosca do quadro não tivesse sido atacada pela corrosão. Pedivela, relação traseira e corrente, lixo. No final das contas tive que comprar um pedivela, catraca simples, sem marchas, corrente, dois pneus e câmaras, pedais, conduites e cabos, manetes de segunda mão, V.brakes, selim com molas. Depois de um tempo troquei os pneus por Bontrager 26 2.1 pressão alta para asfalto, a Trek merecia e como! Teresa simplesmente tomou posse dela. 
Ontem, voltando do aniversário do neto, Teresa disse que se tivesse que ficar com uma única bicicleta seria aquela. Ela está fazendo este ano 30 anos, muitos deles maltratada pela maresia e um moleque mimado. Roda macio e rápida feito um anjo. Quem olha não dá nada. Quem pedala não quer devolver.

E há vícios que nunca perdemos na vida.

A Haro Impasse estava parada no meio da rua servindo de baliza para estacionamento de vaga de automóvel de uma tradicional bicicletaria. O dono me perguntou o que queria fazer com "aquela Caloi", não respondi, só paguei o que me pediu, R$ 150,00. Era só um esqueleto, quadro, garfo, avanço, guidão, manoplas; o que restava dos manetes, passadores de marchas e freio dianteiro além do canote torto e selim de péssima colocados ali provavelmente para torna-la mais visível; rodas amassadas, pneus ressecados e sem uma das câmaras; nada de pedivela, câmbios, cabos e corrente. Dei mais R$ 35,00 por uma câmara nova para sair rodando com ela, bem entendido, pedalando a minha e empurrando ela. "Como você vai fazer para levar?" foi a última coisa que o velho bicicleteiro me perguntou. "Ué! Você foi ciclista profissional, sabe como se faz", e lá fui eu com as quatro rodas rua abaixo.
Só quando cheguei em casa é que fui olhar com atenção o que tinha comprado. Sempre é assim, o entusiasmo infantil vai tão mais rápido que sequer vê o racional pelo espelho retrovisor. Depois que faço estas besteiras, e adoro fazê-las, o primeiro olhar sempre vem acompanhado de um grito silencioso dentro da cabeça - "Estou louco! Não! sou louco!".
Bom, a hora da verdade: quadro e garfo em bom estado, uma leve ferrugem aqui outra ali, e pintura original, desbotada, linda, me faz sorrir. Avanço e guidão enferrujados, mas com longa vida pela frente. Aros danificados porque devem ter passado direto por um buraco profundo ou subido numa guia sem frear; traseiro com um afundamento de quase dois centímetros, o dianteiro bem menos, mas bem torto. Rolamentos, todos, surpreendentemente funcionando bem. Estranho, a graxa parecia nova.
Desmonta tudo e boa surpresa, está melhor que a aparência. Dá para perceber pela graxa dos rolamentos que foi menos usada que aparenta. Passadores Shimano GS 1988, ótimos, manetes, freios, tudo Shimano original, inutilizados. Triste. Canote, carrinho de selim e selim desta qualidade nem pensar. Vai tudo para reciclagem.
Paro, avalio, decido remonta-la sem marchas. Olho o que tenho no meio das caixas de peças de meia vida ou descartadas por amigos e descubro que tenho praticamente tudo, inclusive o movimento central e o pedivela simples, de coroa única. Vou precisar comprar o par de Vbrakes, catraca, e um selim. O eixo traseiro está meia boca, mas fica por enquanto. Vai demorar, vai dar muito trabalho, mas creio que consiga recuperar os aros originais. E recuperei, pelo menos consegui que eles funcionem. O dianteiro quase zerou; o traseiro estava indo no bom caminho, mas a ansiedade fez o trabalho passar do ponto. Estão montados na linda bicicletinha, rodam, mas um dia terei que trocar. Será uma decisão que tomarei depois de ter rodado uns bons km.
Montada, pronta para rodar. O pneu da frente, um Pirelli faixa branca com cravos, deu para aproveitar. O traseiro, um Levorin Praiano estava desalinhado e decidi trocar por um pneu de competição MTB que tinha guardado. Bicicleta urbana com pneus de cravo é ruim, mas a ideia aqui é gastar o mínimo possível, e gastei pouco. Leva para rua, traz para a oficina, ajusta, leva para rua, traz para ajuste... "Deu! Funciona."
Tal qual a Trek e todas as que restaurei ainda vai ter um trabalhinho, porque sou completamente neurótico com qualidade. Mesmo do jeito que está dá para perceber que quadro e garfo desta Haro Impasse 1988 é um sonho. Creio que seja 1988 pelas peças, mas uma coisa me chamou atenção: a caixa de direção é over, o que não me lembro de ter visto naquela época. Só fico triste porque é pequena para mim. Não importa, alguém vai querer e se apaixonar, disto não tenho dúvida.

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